Cuspindo a Barlovento
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Rua Serpa Pinto, 4 | Rua Capelo, 13 1200-444 Lisboa
26 . 09 . 2024 → 05 . 01 . 2025
3ª feira - domingo → 10h00 – 18h00 [Última entrada :: 17h30]
Artista
Manuel Sendón
Desde muito novo que ouço, e às vezes até presenciei, histórias fantásticas relacionadas com o mar. O
mar tão cheio de laranjas que adquiria a sua cor. Marinheiros que apanhavam nas suas redes conhaque
francês. Uma aldeia pintada com leite condensado. Crianças com as bocas cheias de guloseimas em forma
de chifres trazidas pelo mar. Barcos de ferro cravados nas rochas ou simplesmente largados no meio da
areia…. O mar devolvia das formas mais inusitadas os objetos dos quais se tinha apropriado.
O caso do Prestige é bem diferente. O mar vomitou algo que não queria, algo que lhe foi atirado de forma
não natural. O resultado era previsível, dado que os cientistas tinham estudado as correntes de Nadal que
determinavam o regresso do fuelóleo à costa, mas o desprezo por este país fez com que os responsáveis
nem sequer pedissem a opinião dos cientistas e se limitassem a cuspir a barlavento.
As rochas de Nemiña pareciam o negativo de uma instalação de Christo. A vista do Coído da Pedriña de
Muxía era desoladora. Postes destruídos, árvores pretas, pássaros e caranguejos em agonia cobertos de
alcatrão, rochas, areia, passeios, jardins, parques infantis negros. Tudo negro. Uma paisagem apocalíptica.
Lembrava as imagens que foram transmitidas na 1ª Guerra do Golfo, em 1991, como a do pássaro coberto
de petróleo, que mais tarde se revelou ser devido à maré negra causada pelo Exxon Valdez. Enquanto negavam
reiteradamente a existência da maré negra.
Imediatamente, chegaram voluntários dos mais diversos lugares e, com as mãos e utensílios de outros
trabalhos, iniciaram com entusiasmo uma tarefa para a qual não tinham sido treinados. Desta forma, os
objetos cobertos de alcatrão adquiriram uma nova vida, tornando-se simultaneamente símbolo da situação
que estava a ser vivida. Um trabalho desesperado, em que, como Sísifo, eram obrigados a limpar de
novo as praias e enseadas que tinham deixado limpas na maré ant erior.
Os apanhadores de percebes da Costa da Morte viram seu modo de vida arruinado e responderam com
energia também. Lembro-me da véspera de Natal na enseada de Touriñán, onde duas dúzias de apanhadores
e apanhadoras de percebes recolhiam o alcatrão em sacos, como se estivessem a lavrar no campo,
enquanto em segunda linha centenas de soldados não davam vazão ao que eles apanhavam.
Nas Rias Baixas, os marinheiros saíram para enfrentar o alcatrão, desafiando o mar e as proibições. Reconverteram
panelas, forquilhas, ancinhos e outros utensílios do quotidiano enquanto os ferreiros desenhavam
curiosos dispositivos próprios para a pesca do alcatrão, escrevendo uma das páginas mais épicas
da história do mar na Galiza.
Enquanto o navio já só derramava “fios de plasticina”, o Instituto Hidrográfico Português informou-nos
que na verdade continuava a vazar mais de 100 toneladas por dia. A informação foi apropriada por propaganda
política, causando indignação coletiva. Como resultado, surgiu o movimento Nunca Máis, que
reuniu centenas de milhares de galegos que exigiam o apuramento de responsabilidades, dignidade e um
futuro para um povo que tinha sido maltratado. Movimento sem paralelo na história de um povo habitualmente
representado como submisso e conservador. Sem deixar de ser um nome próprio, a expressão
Nunca Máis converteu-se, mesmo fora da Galiza, em sinónimo de rebelião cívica contra a injustiça.
Viva o espírito do Nunca Máis.